Graham Greene: um romancista inquieto e intemporal


O século XX viu nascer muitos romancistas e homens da palavra que ficaram na história pela sua escrita irrepreensível e pela imaginação que colocavam em cada obra. Poucos terão, ainda assim, tido uma vida tão rica em histórias dignas de romance como o autor britânico Graham Greene (1904-1991). 

Se por um lado Greene se tornou conhecido e largamente adorado pelos romances que o próprio definia como “entretenimentos”, são também as suas obras mais profundas e filosóficas, quase existencialistas, entre a relação com o catolicismo e a compreensão das relações humanas - e da posição do homem na sociedade, na vida, na sua época -, que o tornam ainda hoje um dos autores do século passado mais relevantes e intemporais. 

A obra de Greene, quase integralmente autobiográfica, é uma viagem pelas suas experiências e reflexões, pelos países que conheceu, pelas profissões que assumiu e por todas as viagens que teve oportunidade de fazer e que lhe ofereceram perspectivas diferentes sobre o mundo e o Homem. 

O Catolicismo "inconformado"

É em 1926 que Graham Greene, agnóstico até ao momento, se torna oficialmente católico, convertendo-se “intelectualmente” - mais que emocionalmente - à religião, em parte por influência da sua futura esposa, com quem casaria no ano seguinte. 

O catolicismo face ao cepticismo é um dos temas centrais de grande parte da sua obra: as suas personagens oscilam constantemente entre a fé e a desilusão num Deus que não lhes dá certezas, como esperariam, em troca da sua devoção. A sua alma atormentada por este questionamento constante espelha-se nas contradições que atribui às personagens da sua imaginação, que as tornam ricas, fascinantes e inesquecíveis aos nossos olhos. 

O que Greene explora nas suas obras é, de certa forma, o "lado negro" da fé e da religião: o que em lugar da redenção faz sentir culpa, o que gera angústia em lugar de conforto. Se a sua infância, atormentada por um atribulado período passado na escola onde o pai era director, e que o levou a viver durante algum tempo com um psicanalista para tratamento, pode ser a explicação para o seu agnosticismo, o seu catolicismo justifica-se pelo mesmo motivo: a necessidade permanente de enfrentar as suas contradições de espírito e procurar um qualquer conforto na incapacidade de se conformar. 

Jorge de Sena descreve-o como um “romancista católico”, mas Greene será sempre visto como um católico inconformado, ou um “católico agnóstico”, como se auto-denominava - que acredita exactamente por questionar e perceber a contradição da fé. 

Um dos romances que concretiza esta dúbia crença é O Poder e a Glória (1940), onde acompanha um padre fugitivo no México rural que pretende cumprir os seus desígnios católicos, apesar da constante ameaça de morte de que é alvo por parte de um governo revolucionário. Mas fá-lo de forma ainda mais eficaz em O Fim da Aventura, a história de uma mulher profundamente católica que de um momento para o outro abandona o seu amante, um homem sem crenças, deixando-o profundamente amargo e desesperado para o resto da vida. 

Bendrix renega, neste romance, toda e qualquer possibilidade da existência de Deus, sobretudo por não conseguir fazer coexistir a sua presença com os acontecimentos em torno de Sarah, a sua amada. A dúvida existencial atravessa todo o romance, a começar pela história de amor que lhe dá forma. Diz Greene que o amor não pode simplesmente ser algo biológico e cientificamente explicável - não existirá, em tudo, uma dimensão inexplicável que torna a vida mais imprevisível? 

A política e a sátira aos Serviços Secretos 

A par da religião, a espionagem foi um dos temas mais prementes na obra de Greene, oferecendo às suas histórias um lado policial e, em simultâneo, um cunho satírico muito forte. A abordagem a partir do interior dos Serviços Secretos deve-se ao facto de Greene ter sido espião na "vida real": depois de ter sido jornalista e correspondente de guerra, foi recrutado pelo MI6, em 1941, o que o levou a viajar muito e a trabalhar longe do Reino Unido, entre Serra Leoa, Congo, México ou Cuba. 

Nesta colaboração com os Serviços Secretos britânicos durante a II Guerra Mundial, Greene tomou contacto com alguns agentes duplos que trabalhavam camuflados junto dos ingleses, como o famoso caso de Kim Philby, conhecido de Greene e que se veio a revelar um espião russo. Estas histórias inspiraram os seus romances de “entretenimento”, que no entanto tinham sempre um fundo filosófico mais profundo, como é o caso de O Americano Tranquilo (1955) e O Terceiro Homem (1950). 

Numa obra como O Nosso Agente em Havana (1958), assume-se mesmo como um verdadeiro mestre da sátira na espionagem: ao conhecer intrinsecamente os processos, as pessoas e o ambiente em torno dos serviços secretos, mostra neste romance como um simples vendedor de aspiradores consegue enganar todos os superiores sem ser facilmente descoberto. 

Ainda que tenha participado activamente no MI6, as crenças políticas de Greene nem sempre o posicionaram junto dos que governavam. Ao conhecer Fidel Castro, mostrou-se fiel à causa comunista em Cuba e atacou mesmo as suas próprias palavras em O Americano Tranquilo para com os vietnamitas. Foi também, durante um breve período da sua vida, membro do Partido Comunista britânico. 

Contudo, politicamente falando, as suas obras focaram-se muito mais na política internacional, ou em tempo de guerra, do que explicitamente a favor ou contra determinadas crenças políticas. Mesmo n’O Cônsul Honorário (1973), onde satiriza de certa forma as figuras políticas que existem apenas pelo título que carregam, deixa de lado qualquer escolha de lados. A sua área de eleição foi, mais que qualquer outra, a escrita. 

Uma vida e obra com valor cinematográfico 

Toda a obra de Greene se expressa em termos profundamente cinematográficos: a sua escrita fluida, os temas de espionagem e acção, o diálogo realista e a narrativa rápida, em tom de thriller. Estas características enunciam a sua paixão pelas técnicas cinematográficas de storytelling e a capacidade única de dar a conhecer de forma muito visual as suas personagens. 

Além de aplicar esta visualidade cinematográfica às suas obras, Greene escreveu ainda alguns guiões para cinema, com destaque para O Ídolo Caído e O Terceiro Homem (do qual o romance fora apenas um primeiro "esboço"), ambos os filmes realizados por Carol Reed. 

É inegável a sua influência sobre o filme noir, em termos de argumento e da forma de contar a história - tanto nos temas de espionagem como no retrato de todas as tormentas dos seres humanos. A par da capacidade cinematográfica da sua escrita, Greene entendia bem a diferença entre um livro e um filme e o que mais os aproximava: “Um filme não é um livro. Se a fonte de um filme é um livro, não se pode ser demasiado respeitador do livro. Tudo o que se deve ao livro é o espírito”. 

A dimensão humorística e dramática das personagens 

Ao longo de 67 anos de escrita e mais de 25 romances, vários livros de contos, peças teatrais, livros infantis, ensaios e livros autobiográficos, a sátira e a seriedade destacaram-se e misturaram-se magistralmente na obra de Graham Greene. 

As suas personagens são de tal forma construídas que facilmente se tornam inesquecíveis para qualquer leitor: são constantemente atormentadas por crises morais, por reflexões filosóficas que apenas lhes trazem mais dúvidas e menos certezas, seja por motivos de crença religiosa, de indecisão política ou - na maioria dos casos - de instabilidade da alma. 

A versatilidade de um autor está nesta capacidade de contar histórias bem humoradas com um fundo de seriedade, ou histórias dramáticas com um apontamento de sátira como cereja no topo do bolo literário. E Greene tem tudo isso e muito mais na sua obra: é um autor imprevisível e completo que nos deixa, invariável e positivamente, sem palavras para o descrever.

Raquel Santos Silva

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